sábado, dezembro 17, 2005

A esfera [interlúdio #3]

sábado, dezembro 10, 2005

A esfera - Parte 11

"I put a spell on you
'cause you're mine"

A voz de Nina Simone ressoava no automóvel como o mel em metal da década de 70 (data de nascimento da viatura). Envolvido pela sensação de conforto da sua voz, "o puto" guiava calmamente, seguindo o Audi negro metalizado pelas ruas de manhã.

O carro negro parou e contornou a fachada gótica dum edifício velho. Depois, deslizou para baixo da escuridão de um túnel, que servia de estacionamento de carros para a mesma moradia. Nesse momento o puto foi assaltado pelo dever de telefonar ao Detective: era agora, J., figura dos círculos de poder da cidade, e também principal suspeito de duas mortes tinha acabado de entrar num edifício. O puto combateu o dever que lhe aflorava ao pensamento, no entanto, pensou em averiguar primeiro, de modo a ter todas as respostas quando telefonasse ao Detective. Como os seus lábios se dilataram de alegria, quando pensou em ter todas as respostas na ponta da língua, prontas para as perguntas mais inoportunas do seu superior...

Atravessou o átrio coberto, até encarar a grande porta onde J. se escapulira á minutos atrás. Do outro lado, estranhas grades em formas de gárgulas olhavam-no com desconfiança. Aproximando-se delas, percebeu que eram portões para o jardim privado daquela casa. Viu o mesmo vulto de há pouco percorrê-lo, afastando-se dele e entrando numa casa adjacente.
O puto ainda pensou em usar os seus truques de ladrão já ferrugentos de outras etapas da sua vida, mas quando pousou a mão sobre a maçaneta dourada de ferro maciço e a rodou, percebeu que os truques teriam de ficar para depois: a porta estava aberta.

Sem perder tempo, sem se importar com os quadros de mulheres em estranhas posições nas paredes verde azeitona, sem prestar atenção á simbologia pagã que se afunilava para uma lareira imponente coberta de deuses há muito esquecidos pelo homem, avançou pelas escadas acima. Ainda mais sombria que o piso inferior, o último andar respirava enigmas empoeirados. O que andava o puto á procura? Ele não sabia, mas tinha a certeza que teria de ser algo, algo suficiente para calar um "estúpido" ou mesmo um "idiota" da parte do Chefe.

Os seus olhos fixaram-se de repente. O embrulho que ele vira J. carregar para fora do porta bagagens figurava á sua frente, avançou para ele decidido, rasgou o papel, abriu a estranha caixa de madeira. Uma melodia cresceu, como se de tábuas rangendo se tratasse. Leu a carta rapidamente, e olhou para as fotos, lá dentro. Os seus olhos arregalaram-se muito, tal como o coração perdendo o compasso.
- Rápido, o Chefe tem de saber! - Disse voltando-se para trás, e dando com Ele.

*
- Mãe! Deixa-me ir brincar!
- Agora está a chover, sabes que não podes.
Os prados estão verdes agora! E consigo ouvir o vento a bater! Posso correr sempre, para sempre, posso ser sempre assim! Quando estiver frio, posso enrolar-me nos cobertores há-de me saber bem. E quando estiver sol, penso em lagos que se estendem ao infinito para me ampararem do calor!
- Mãe posso provar a compota?
- Foi acabada de fazer, claro que podes, diz-me o que achas puto.
- É doce Mãe!
*

Sabia que minutos após deixarem de respirar, todo aquele sabor já não era o mesmo. Era bom quando estavam vivas, melhor ainda quando estava conscientes. No entanto, Ele levantou-se insatisfeito. O puto jazia no chão, as suas vísceras vermelhas espalhadas á sua volta... Limpando a boca ao lenço imaculado Ele sussurrou:

- Ughh... demasiado doce.

sábado, dezembro 03, 2005

A esfera - Parte 10

Na minha vida ja tinha estado em muitas casas mas esta era algo completamente diferente. Desde murais a estatuas, tapeçarias e artesanato. Era o tipo de sitio que faria o Marquês de Sade corar de vergonha. Já tinha estado em bordeis mais "católicos" que esta casa... E ainda não tinha passado do "hall" de entrada.

- Chocado Sr. Detective? - Disse ela com um sorriso maroto de quem estava a pedir absolvição por um pecado a cometer... E eu que o diga... No filme que passava na minha mente eu era o padre
- Ao fim de tanto tempo nada me choca. Mas devo confessar que a decoração deixa muito a desejar... Um pouco "softcore" para o meu gosto.
- Meu Deus senhor Detective! Por quem nos toma? Ainda não viu o resto da casa...

E era verdade, não tinha visto. Se tivesse não tinha tentado aquela piada. Comparado com as outras salas o "hall" parecia uma qualquer cena dum convento, um cenario altamente beato... Eu não sei o que se fazia naquela sala de jantar, mas aposto que não se come... pelo menos comida.

- Que acha? Mais ao seu gosto?- Dizia ela enquanto se sentava na mesa, mostrando em toda a gloria o que inconscientemente já me tinha mostrado no escritorio. Mas não faz mal... eu não me queixo.- Sabe... esta casa trás-me doces lembranças... esta mesa... estas pinturas...- Por esta altura ela já estava deitada na mesa, contorcendo-se em ondas de prazer a medida que a memoria do acontecido era de novo representada no teatro da sua mente. As suas mãos viajavam lentamente por aquele vestido negro como que demonstrando os gestos que lhe tinham trazido tanto prazer no passado...- Peço desculpas! Acho que me entusiasmei demais...
- Não há problema, o prazer foi todo meu.- Ela olhou de relance para as minhas calças e fez uma cara de menina gulosa.
- Sim... Parece que sim.
- Bom, mas vamos ao que interessa. Onde fica o escritorio do seu pai?
- Siga-me, eu mostro-lhe

Passamos a pressa por mais 2 ou 3 divisões e fomos deságuar a uma sala em nada similar as restantes. Esta tinha um aspecto espartano, desprovida de luxo e de pornografia (ou arte dependendo do vosso ponto de vista). Era o escritorio e mesmo em frente a porta estava uma secretaria antiga feita de mogno.
- Esta é a secretaria de meu pai. Tudo o que é de valor esta aqui.
...
Depois de uma hora a vasculhar papeis e mais papeis não encontramos nenhuma pista, nem uma. Tudo parecia uma perda de tempo, um proverbial "beco sem saida". A unica coisa que me espantou foi a quantidade de revistas de teor erotico. É esta a nossa classe politica? Mais valia por chulos no comando. Ao menos esses são honestos e não se mascaram por trás duma fachada de "homem de familia" e "bom cristão"...

- Senhor Detective! Acho que encontrei algo!

Era um cofre escondido atrás duns livros (o que faz sentido, pois já é um sitio tão cliché que ninguém iria lá procurar). A porta estava aberta e dentro dele uma pequena caixa quadrada manchada de sangue. Para meu espanto (e alguns vomitos de Lilith) uma mão encontrava-se lá dentro. Na sua palma descançava um papel que me apressei a ler.

"Vejo que esta interessado na minha obra senhor Detective. Mas não se preocupe, em breve tera mais noticias minhas. Assinado: J."
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