quarta-feira, novembro 09, 2005

A esfera - Parte 7

O sangue era espesso, e brotava dum orifício negro no crâneo do homem. Percorria-lhe a testa, inundava-lhe o olho esquerdo, bifurcando-se na maçã do rosto proeminente, por baixo, onde sofria novos desvios d direcção até á boca entreaberta. O homem tentou falar, mas apenas se engasgou no seu próprio fluido vital. No queixo, tombava o escarlate sempre, sempre na direcção do inferno. E ele sabia o que ia acontecer a seguir, o chão ia-se transformar em cobras ou escaravelhos - desta vez eram cobras - e enquanto o sangue do seu parceiro pulsava, ele sentia-se a afundar no maralhal de carne putrafacta, mas viva que se enrolava á volta do seu corpo.

Abriu os olhos silenciosamente. O pesadelo não era novo, já sabia as falas pois já o percorria desde a noite em que perdeu o parceiro numa rusga de rotina.
Vestiu-se rapidamente, tinha o cartão do bordel em cima da cómoda, pensou em deixá-lo lá propositadamente para chocar a empregada peruana que viria mais tarde, mas abriu a gaveta e deixou-o cair sobre a fotografia da sua ex-mulher.
"A gaveta das putas", pensou.
Até ali, não havia nada... Fazia cerca de uma semana que estava á frente do caso acerca dos restos humanos que surgiram nas docas da cidade, e nada. O estranho episódio processava-se de maneira que ele diria pré-definida e em que sentia que tudo o que pudesse fazer, já fora feito, e o resultado remetia-se para lugares onde mortais nada podiam fazer. De facto a autópsia confirmava tratar-se de um homem, na casa dos 30, aparentemente saudável, em que apesar de se desconhecer a sua identidade, nada faria prever o desfecho trágico. Até ali tinham um tórax e uma canela (não ligados entre si) dispostos duma maneira aleatória no pavimento alcatroado. E através das análises ao osso cerrado, e dos resíduos deixados na carne, determinou-se o intrumento de corte:

Uma serra eléctrica. Um Leatherface á solta. Que bom.

Quando chegou ao emprego, o puto, ás voltas no seu escritório minúsculo revirando papeis, espreitando por trás dos móveis. A secretária retocando a maquilhagem e mirando-se no espelho, não percebia que não era a estrela porno de há muito tempo atrás. Baratas que se afastam sempre que acendia a luz do WC... O costume.

- Está uma á tua espera no gabinete. - Disse, seca.

Uma quem?? Abriu a porta, até dar com a mulher, loura oxigenada, alta, de vestido curto negro, e apertado, cintura delgada. Figurava sentada de pernas cruzadas, exibindo as ligas das suas meias, deixando ver tudo o que ela queria que fosse visto, o resto na escuridão ofegante. Os olhos verdes contrastavam com as pestanas pretas grossas. Nunca vira uma mulher assim, quer dizer já, mas apenas em revistas.

- Preciso de lhe contar tudo. - Atirou frágil, superior. - Preciso de lhe contar tudo acerca do meu pai.
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