sexta-feira, janeiro 13, 2006

A esfera - Sexta-feira 13

- Experimenta. Podes-te largar aqui, a sério. Não há razões para continuares a ter medo e a pensares da mesma maneira. Agora é diferente. Anda, estende as tuas mãos...

*

Não devia ter feito isto. Ela não ajudou.
-O que se passa? Não gostaste?
Gostei. Gostei demasiado, foste demasiado boa, nunca tive uma mulher como tu. Nunca mesmo, e o problema foi que estive num lugar onde nunca estive antes. Onde a fronteira da insanidade se cruza com o grotesco, e o problema... o problema foi que gostei. Acho que tu sabes porque tu também lá estiveste comigo.
-Sim. Mas merda Lilith, tenho coisas a fazer. Tenho um psicopata á solta e o que é que ando a fazer? A foder a filha dele. Foda-se.
Ela imediatamente parou de ajeitar o sutiã. Não conseguia fixá-la. Tentei fingir que apertava um sapato debruçado sobre o soalho negro ouvi:
- Não estava a pensar nisso. Mas julguei que as coisas fossem diferentes, desta vez mesmo...
- Não, não são. E sabes que mais? Já chega! Vais ficar aqui, trancas as portas, fechas as janelas, e sentas-te até eu chegar. Tenho coisas a ver, o puto morreu faz hoje uma semana. Como é que digo á mãe dele que não encontrei o assassino? Como? Não é a comer-te de certeza que vou lá chegar! Merda!

Fechei a porta e dirigi-me ao Crown. Sabia que as cortinas iam-se afastar, um anjo pálido observar os meus movimentos. Mas não me voltei, quem sabe o que aconteceria se visse de novo o corpo ao qual me afastava. Sei que não deveria ter dito aquilo, ela não tem culpa de nada, mas faz tempo desde que me consegui concentrar em algo, estando ela ao meu lado.
Achei-me a de volta ao local do homicidio do puto. Contornando os mesmos prédios, nas mesmas ruas de sempre. Era noite e os carros pouco ou nada persistiam. Depois de estacionar por baixo de um túnel pertencente á porpriedade de J. passei a fita amarela típica dos sítios onde decorrem investigações judiciais.

Mas não havia ninguém. Fui lá acima, ver o giz no chão que rangia. O sangue nas paredes e que cobria a carpete. J. já fora indiciado, e, inclusivamente preso, se bem que por pouco até ter pago a caução. E continuava nas habituais festas, nas notícias da TV local, não por motivos que tivessem a ver com sangue ou morte. E eu perguntava-me: Qual o meu papel aqui, no meio desta cidade putrefacta? Não mudei absolutamente nada: todas as provas na mesa e ele ainda á solta. Ele bebendo champanhe por taças altas e rindo-se enfiado em fatos de ocasião. Ele continuava o mesmo. E eu... eu tinha-me perdido algures.

Senti o vento quente na cara, assim de repente, acompanhado por sons de madeira a crepitar. Desci as escadas rapidamente, o mais rapidamente que pude, até conseguir ver o que julguei que queria naquela casa amaldiçoada.
- Olá.
A voz era cavernosa e seca. Muito por oposição áquilo que soava no ecrã de um televisor, sempre cordial e sorridente. Mas eu sentia-me aterrorizado.
- Foi fácil passar pelos guardas. Tão pequena é esta cidade, e tão fácil saber os podres de cada um...
- Meu MERDAS!! - Saquei da pistola o mais rápido que pude, mas deu-se um disparo proveniente de trás de mim. E senti a perna a falhar, uma dor lancinante na canela. Foi fácil tombar até ao fim, mas tinha de ver quem é que o tinha feito.

- Lilith!
- Voltei a pôr o báton e sair á rua. Achei que quisesses ter-me de novo. - Disse ela, com a arma ainda fumegando.
Aproximou-se e debruçou-se sobre mim, meteu as mãos na minha cintura e tirou-me as calças muito lentamente, sempre, sempre com um sorriso nos lábios. Poisou as mãos na no meu peito, e começou a lamber o sangue que brotava do ferimento.
- Não!
- Não faz mal... eu trato de ti. Deixa tudo com a Lilith, a partir de agora estás connosco. Oh... vais gostar tanto de ver as nossas decorações na cave!
- Precisamos de ti... e de agora em diante chamar-te-emos Adam. Esta família pode finalmente continuar agora que estamos todos juntos. - Proclamou Jesus rejubilando em alegria pura, o som misturando-se no fogo das labaredas da lareira.
Perdi-me no escuro até encontrar prazer desenfreado. Depois voltei a perder-me.

*

Estendi as minhas mãos, e ela poisou-me um fígado nelas. O cadáver era o de um jovem que encontrámos divagando á noite perto de uma Universidade. Sentia a tentação, e a pergunta sempre pairando: qual o meu propósito aqui?
Neguei-me a mim próprio até perceber que já não havia. Sabia que ela estava certa. Olhei a esfera gigante no céu estrelado que nos observava. E levei á boca o orgão, uivei com eles, enquanto fazia as minhas pinturas de guerra na pele nua.

Tinha renascido.

5 Comments:

Blogger Ana said...

Só para agradecer a visita :D e sim, eu também gosto de gatos pretos!

2:28 da manhã  
Blogger laura said...

que comece, então, o ritual! fantástico, este texto...

2:23 da tarde  
Blogger Sara MM said...

safa!!!!
o Hannibal ao pé desses é um querido!!

11:06 da manhã  
Blogger Sukie said...

É uma boa narrativa, apesar de obscura.

2:42 da tarde  
Blogger José Mata said...

Dava um bom mini-argumento para uma banda-desenhada ao estilo de Frank Miller & Co.
A perversão é bem-vinda.

Ah, obrigado pelo comentário no meu blog.

3:16 da manhã  

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