domingo, setembro 13, 2009

O Fogo da Alma: Parte II

Hoje venho apresentar a 2ª parte da nossa historia. Escrita pelo nosso "Guest author" de imenso talento The Chintz. Enjoy!


O comum ser humano vive na sombra da sua imaginação e no seu desejo pitoresco, sem conseguir libertar-se da clausura ilusória onde vagueia desnorteado. O comum ser humano, mestre da sua auto-sociologia, convenceu-se que a evolução social se faria na ascensão das potencialidades, rumo à perfeição que tanto desejava alcançar, limitando e corrompendo todo o processo da dialéctica, misturando no sistema de racionalidade a confusão das emoções primitivas. O comum ser humano, espécime capaz de prever o desencadear do futuro, arrojou-se a profetizar uma caminhada ao requinte estádio da excelência biológica, uma caminhada que se desenvolveria naturalmente, uma caminhada que estaria prescrita nos papiros de uma civilização antiga, uma caminhada que um oráculo insuspeito previa como «imperturbável, inalterável, fixada no destino à grandiosidade». O comum ser humano, denominado por homo sapiens, acabaria por recalcar no esquecimento as filosofias do darwinismo, onde Charles Darwin, num momento de rara iluminação, defendia que a perfeição é antítese da evolução, contrapondo todo o idealismo que rodeia a mente iludida das massas humanas. Pois bem, o comum ser humano vive na ilusão que está predestinado à perfeição por via das forças naturais, convencido que para isso bastará cruzar os braços e atender que o tempo traga a encomenda do destino: a mais adaptada espécie animal que respirou no seio do universo existente. O comum ser humano não podia estar mais enganado, toda a evolução – seja biológica ou social – não se traça numa linha unidireccional com sentido ascendente. Exemplificando com contextos históricos, temos na biologia a exterminação maciça da ordem dos titãs que dominou a fauna terrestre durante milhões de anos; no caso social temos a queda das civilizações romanas e gregas e a consequente permuta por povos bárbaros. A evolução, a ser traçada, deveria ser semelhante a um monte de gatafunhos esboçado por um autista. Por tudo isto, o comum ser humano não pode convencer-se que a evolução se fará sem que haja fases descendentes, fases que colocarão o homo sapiens à prova, fases que mais se assemelharão à regressão do que à evolução. O conto que se escreve vive numa dessas fases, numa era de descrença e de decadência, uma época nunca prevista pelo comum ser humano, num período que não foge à imagem da Idade Média e que os optimistas esperam que seja só um pequeno percalço na longa caminhada ao Olimpo da perfeição.

2015 – Fase final da crise económica que estalou em 2008

As diferentes potências mundiais viviam num clima intenso de animosidade crescente, até ao inevitável ponto de rotura que facilmente se podia prever, e quando a rotura se deu, não estivéssemos nós a falar das sociedades humanas, os conflitos armados dominaram o quotidiano mundial. Contudo, ao contrário das antecedentes discórdias, o globo não fora decomposto, convenientemente, em eixo do mal e em eixo do bem, mas sim em diferentes eixos, em diferentes desaguisados que rebentaram no mesmo espaço temporal, arrastando todo o planeta terrestre numa temporada de infindáveis campanhas militares. Infelizmente, numa época de assinaláveis feitos tecnológicos, qualquer guerra de proporções globais acabam por adquirir contornos de apocalipse, não fosse o comum ser humano um indivíduo inconsciente das consequências dos seus acessos de fúria.
Em 2021, qualquer transeunte que estivesse a deambular em Marte, acabaria por se deslumbrar com o fogo-de-artifício nuclear que sobrevinha do planeta já-não-tão azul, mas o fascínio rapidamente cedia lugar ao pavor, quando findado as contendas bélicas se analisavam o que restara da cultura humana. Lançando uma avaliação contingente, ainda sem fontes confirmadas, estimava-se um extermínio de nove décimos da população mundial, e se a estimativa é grotesca e inverosímil, então serve perfeitamente para ilustrar a calamidade que se abateu sobre o planeta.
A acção onde sucede este conto ocorre no ano 2088, e pasmem-se os distraídos, o comum ser humano não se deslocava em viaturas voantes, não existiam de todo máquinas robóticas semelhantes ao ser humano, nem apareciam clones para a imortalidade do novo homo sapiens. Será uma regressão da sociedade às sombras da Idade Média, com um novo regime proto-feudal, cuja massa humana experimentava uma aversão às tecnologias e à ciência. As cidades reconstruíam-se na rigidez das clássicas pedras e as sociedades reviviam o labor esclavagista, as estradas empedradas enchiam-se de carroças e carrucas, os oceanos tradicionais vacilavam as naus e as caravelas vigorosas. A barbaridade reinstalara-se nos hábitos sociais, muitas vezes imposta pela escravatura vigorante, e os que não se sujeitavam às correias dos feudais viviam do contrabando e das piratarias casuais. Ora bem, é aqui onde se contextualiza o nosso protagonista: filho da antiga pátria lusitana, um Marv de vísceras portuguesas, uma besta medieval que apelidavam de Aníbal.
Aníbal, descendente de pescadores pobres, insurgiu-se contra a precariedade do trabalho emancipando-se rumo ao contrabandismo. Anos depois, a convite dos colegas da má-vida, juntou a arte de navegar – conhecimento adquirido nas tradições familiares – e a arte do furto, do saque e do assassínio. Contudo, é preciso entender que Aníbal é mais do que um mero ícone à criminalidade cruel; Aníbal é um símbolo da insurreição à impiedade feudalista; Aníbal é um Clint Eastwood de sabre fulgente; E acima de tudo, distanciando-se das massas sociais, Aníbal não é um comum ser humano.
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