domingo, dezembro 06, 2009

O Fogo da Alma: Parte VI

O mar agitava-se como um animal acossado depois de se aperceber que se encontra numa ratoeira. A sua superfície branca e volátil debatia-se esmagando-se contra o casco a estibordo, graças a um vento poderoso proveniente de sítios longínquos. No convés entravam por vezes os resquícios das águas que se exaltavam nesse vociferar contínuo ao embater contra as superfícies sólidas do navio. O sol podia-se tornar desconfortável para a tripulação, mas já a meio do mar alto, a maresia e humidade instalada apaziguava os seus excessos. Aproveitando a potência do ar em circulação ia o velame dos três mastros arqueados e planos espelhando o branco puro em seu redor. Na proa, frente ao gurupés, Aníbal observava todo o navio na sua plenitude, os piratas abraçando as cordas, mais além outros dois conversando. Um deles de costas para si, parecia mirar o mar. O veleiro seguia rápido e destro, traçando uma rota para um local que só Aníbal sabia qual era, ou melhor, ele e o petiz que se lhes tinha juntado há duas semanas e que raramente aparecia fora do porão. Aníbal indagou-se sobre o pequeno rapaz, os seus modos e a sua indiferença à vida a bordo depois de tão veemente ter insistido para se juntar à tripulação.

- Mastro grande a todo o pano!

E Aníbal fitava o desenrolar de mais e maiores velas que caíam na sua direcção para logo incharem com a força do vento titânico. Foi só quando caiu a ultima que tudo mudou. Aníbal viu-a desdobrar-se lentamente, demasiado lentamente enquanto uma grande nuvem cobria o centro do sol e avançava para o seu perímetro. O azul profundo retrocedeu no seu espectro de cor para dar lugar ao vermelho incandescente – achas de uma fogueira que ficou por carbonizar – e reflectiam o brilho intenso para si. Nesse momento Aníbal reparou nos olhos dos seus camaradas à sua volta, despojados de humanidade e da família dos pensamentos senis voltavam-se para ele focados, atentos.

Aníbal deu por si a dar passos atrás, quando uma escuridão avassaladora avançou ao seu encontro, as estrelas os olhos rubi de violência dos seus companheiros. Reparando nos dois que falavam no convés, notou protuberâncias emergindo da sua boca, crescendo até estagnarem tornando-se bicos imundos de um amarelo forte. Nos semblantes desses mesmos homens emergiam penas débeis, farrapos de uma quimera de pesadelo – um homem-ave sanguinário e cruel, raiz de todo o mal. Pareciam continuar as suas acções, sempre vislumbrando Aníbal como se ele fosse um assunto a resolver logo que acabassem as suas tarefas. Por fim todos se voltaram para ele e as costas vergaram-se abaixo para depois se encarquilharem num estranho ritual pré-carnificina. Os olhos encovados e cada vez maiores e mais vermelhos rugiam as badaladas sónicas de um inferno anterior ao tempo, ciclónico e destrutivo que se abatia sobre o homem.

Aníbal sabia que já tinha visto aquelas figuras monstruosas no mar oriental, algo que tentara esquecer fazia já muitos anos, reconheceu-lhe também a loucura que se abeirava de si e o cheiro de um sangue voraz. Sentia-se a ensandecer, tal como o fizera há anos frente aos paquistaneses. O pesado cenário desenrolou-se até que um dos 5 homens se chegou à frente, voltou o bico para o céu incandescente e ululou um grasnar gutural. Os restantes imitaram-no e o grasnar horrendo tornou-se numa parede de som baça e pantanosa. Aníbal sabia o que as criaturas estavam a fazer e percorreu-lhe um arrepio frio em toda a sua espinha à medida que ia perdendo as forças. Os monstros chamavam outros, o grasnar nada mais era que um farol de som que se libertava para a atmosfera distante. Qualquer um que ouvisse aquele som viria e Aníbal sabia que muitos mais aguardavam nos recantos mais sujos do oceano, pois esta era a sua casa e ele, mais uma vez, um intruso.

Num último esforço, trouxe as mãos à cintura para tocar a superfície polida da sua saif. Sentiu um puxão nas calças e ao olhar a seu lado deu com o rosto franzino do rapaz e todas as cores se alteraram, e afinal já não havia céus vermelhos como se o mundo estivesse prestes a chegar ao fim e não havia o brilho no mar, apenas o sol e o vento em rajadas descontínuas. Olhou o resto da tripulação, parecia que nada tinha acontecido, continuavam os seus afazeres, os outros dois na proa prolongavam a sua conversa. Aníbal voltou os olhos novamente para o rapaz que parecia indiferente à sua estupefacção e estado de alerta. O rapaz finalmente pronunciou-se:

- A chinesa. Tens que matar a criança.
Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 2.0 Brazil License.