quarta-feira, julho 27, 2005

A esfera - Parte 1

Era tarde quando novamente voltou a sentir. A cabeça pesava-lhe toneladas fazendo o pescoço dobrar-se em misericórdia fingida. Cheirou o álcool no chão, a garrafa de Jhonny Walker tombada no chão deitava o sabor amargo para a atmosfera. Sentiu a pele molhada do whiskey e fazendo força nos joelhos tentou erguer-se. Não conseguiu.
A mente balançava-se nos dois mundos paralelos. A inconsciência desafiava a consciência para um jogo de poder. De barriga para cima sem se mover, olhou em redor. A casa vazia. O sol no lusco-fusco. As cortinas esvoaçando. O vento quente.
Admirou-se de ver vermelho, em pequenas poças no chão recortado a madeira. Joelhos outra vez. Nada.
Sentia um sabor amargo na boca. Não de álcool, algo como ferrugem num metal esquecido. Já fazia tanto tempo... Quanto? Lembrava-se de um vestido azul numa noite calma. Um sorriso dócil, que ele retribuiu de chofre. Uma mão. Um copo...
Já haviam passados largos minutos e a mente tornava-se nítida. A lucidez ganhava terreno. A força voltava... os joelhos agora.
Cambaleou um pouco, até parar encostado a um sofá solitário. Mas não fechou os olhos. As manchas escuras inundavam o chão em direcção ao átrio, convidavam-no a se mexer, mexendo-lhe no espírito. O sol descia, ao mesmo tempo que aumentava de intensidade a luz incidente no líquido vermelho-negro e nada mais importava.
Fazendo-se mover o mais rápido que podia, entrou no átrio, e seguiu até á penumbra dum quarto. Ficava exactamente oposto a uma parede lateral da sala, sendo por isso que denotava as frestas de luz escarafunchando o chão por baixo da porta fechada. Mão na maçaneta e lentamente a rodar.
O sangue seguia até aos lençóis da cama. Conseguiu ver as tripas espalhando-se pelo colchão, roçando os cabelos grandes e castanhos. No chão o vestido azul rasgado e embebido no sangue dela. Nua, numa posição não-natural e de olhos ainda abertos gritava no silêncio por alguém antes que fosse demasiado tarde. Era demasiado tarde.
Depressa o amargo da boca se tornou doce, naqueles instantes anteriores ao vómito. A um canto da casa, o homem sentiu-se a perder as forças enquanto agoniava ao sabor da sua última refeição.
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