sábado, dezembro 26, 2009

O Fogo da Alma: Parte VII

As ondas embalavam o barco sob o olhar indiferente das estrelas. Na proa, Anibal contemplava o vazio da noite a diluir-se no negro oceano. A sua mente fechada sobre si mesma, bloquiando tudo excepto a sua visão. Dentro dele os pensamentos seguiam o pendulo do mar. O porque da viagem,o estranho destino que os aguardava, o rapaz que por sorte embarcou e o seu estranho pedido. Anibal tentava a todo o custo assimilar as informações que recolhia e encontrar respostas... Mas tal não acontecia... Algo não fazia sentido...

- Capitão! - Uma voz rompe o ciclo - Senhor?
- Diga Imediato...
- Tenho comigo o relatorio do dia, tal como o Capitão ordenou, por escrito e ao pormenor
- Bom trabalho. Estarei na minha cabine e Imediato...
- Diga Senhor?
- Não quero ser incomodado. É uma ordem...
- Sim Senhor! ... Capitão... Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Diga.
- Sente-se bem Capitão? Tem andado um pouco estranho ultimam...
- Eu estou bem Imediato - disse Anibal num tom rigido, quebrando a frase do Imediato - Estou apenas cansado. A viagem esta a ser mais longa do que esperava... A minha ordem mantem-se. Até amanha Imediato.
- Até amanha Capitão!

Anibal mentira. Não era apenas o cansaço que o afectava. Era a loucura. As alucinações estavam cada vez mais fortes, mais violentas. Imagens de seres meio-homem meio passaros, os céus em fogo sobre as suas cabeças, repteis vindo das profundezas do Oceano Pacifico para reclamarem o barco e todos os seus tripulantes... e sempre a icapacidade de acção por parte dele... a paralisia... o medo

***

A cabine de Anibal era pequena e espartana. A unica iluminação existente provinha duma pequena vela que ardia sobre a mesa que o portugues usava como secretaria. Sentando-se à mesa e puxando do seu ultimo cigarro, Anibal preparava-se para ler o relatorio diario. A razão de haver um relatorio escrito não era por acaso, servia dois objectivos: em primeiro lugar imprimia sobre a tripulação uma ideia de normalidade, de rotina; servia também como desculpa para Anibal se manter afastado da tripulação. Quanto menos tempo fosse passado por entre a tripulação, menos hipotese existiriam de se evidenciar os sinais de loucura, de fraqueza ao qual nenhum capitão pirata se pode dar ao luxo de ter...

- Então Capitão, tudo em ordem?
- Quem está ai? Eu pedi para não ser incomodado! - Disse Anibal para a porta antes de constatar que o som vinha da sua cama. Lá sentado estava o jovem. Com o seu olhar timido e ausente, poucos acreditariam no pedido que tinha feito apenas a alguns dias atras...
- Como entraste aqui dentro? a porta estava tran... Esta trancada!
-Sabes bem como entrei Anibal, apesar de não o quereres aceitar.
- Eu já não sei nada... Apenas tenho duvidas - as palavras de Anibal eram dotadas de extrema sinceridade.
- Se estas a falar das visões, não te preocupes... Elas vão continuar e seram mais intensas. Não tens como evitar...

Anibal tentou disfarçar o seu nervossismo. Como poderia alguem saber das alucinações? Depois de tanto esforço em ocultar a verdade da tripulação...

- Não te preocupes. O teu segredo está seguro. Mas é verdade o que te digo. As visões vão continuar... E vão te atormentar cada vez mais. É o destino de todos aqueles que lideram expedições a Ilha de Amardadestão. Foi uma das razões pelas quais te escolheram... Apesar de tudo, és dispensavel...
- Quem pensas que és para me falares nesse tom?
- Mas tu achas que ainda estas a falar com alguém?

Colerico, Anibal levantou-se para esmurrar o rapaz... mas para seu horror, não estava la ninguem... Anibal estava sozinho na cabine...

***

Anibal estava nu e o céu estava em chamas. O chão era feito de ossos humanos e vermes. Chovia sangue. Anibal caminhava em frente. À sua volta pedaços de pesadelo devoravam os corpos dos marinheiros, da sua tripulação. Ao longe uma imagem indefinida esperava por ele, chamava por ele dando-lhe rumo... Indiferente ao que o rodeava, Anibal seguia em frente. Sob os seus pé ele sentia as lascas de osso e os vermes esmagados, ele ouvia os gritos dos homens... Mas nada o afastava do seu curso. Havia algo naquele trono (ele sabia agora que era um trono) que o chamava. Mesmo que ele quisesse, ele não o conseguiria fazer. O seu corpo agora estava coberto de sangue e a cada passo ele ve imagens dispersas... Karashi, Goa e uma praia desconhecida.
Sobre o trono, Anibal via agora, uma mulher chinesa nua, dotada duma beleza exotica e cabelos pretos, senhora dum corpo luxuriante. Na sua mão direita ela segura duas correntes que servem de trelas. Na extremidade duma delas encontrava-se Iraja, tambem ele nu, lambendo o pé da sua dona, incapaz de esconder o seu extase. A estremidade da segunda corrente acabava numa trela que jazia sobre a mão esquerda da mulher.

- Vem para mim Anibal... Toma o teu lugar... Mata o rapaz!

Anibal acordou bruscamente. O seu corpo alagado em suor. A sua mente abalada

E sobre o navio as estrelas brilhavam de forma indiferente.

domingo, dezembro 06, 2009

O Fogo da Alma: Parte VI

O mar agitava-se como um animal acossado depois de se aperceber que se encontra numa ratoeira. A sua superfície branca e volátil debatia-se esmagando-se contra o casco a estibordo, graças a um vento poderoso proveniente de sítios longínquos. No convés entravam por vezes os resquícios das águas que se exaltavam nesse vociferar contínuo ao embater contra as superfícies sólidas do navio. O sol podia-se tornar desconfortável para a tripulação, mas já a meio do mar alto, a maresia e humidade instalada apaziguava os seus excessos. Aproveitando a potência do ar em circulação ia o velame dos três mastros arqueados e planos espelhando o branco puro em seu redor. Na proa, frente ao gurupés, Aníbal observava todo o navio na sua plenitude, os piratas abraçando as cordas, mais além outros dois conversando. Um deles de costas para si, parecia mirar o mar. O veleiro seguia rápido e destro, traçando uma rota para um local que só Aníbal sabia qual era, ou melhor, ele e o petiz que se lhes tinha juntado há duas semanas e que raramente aparecia fora do porão. Aníbal indagou-se sobre o pequeno rapaz, os seus modos e a sua indiferença à vida a bordo depois de tão veemente ter insistido para se juntar à tripulação.

- Mastro grande a todo o pano!

E Aníbal fitava o desenrolar de mais e maiores velas que caíam na sua direcção para logo incharem com a força do vento titânico. Foi só quando caiu a ultima que tudo mudou. Aníbal viu-a desdobrar-se lentamente, demasiado lentamente enquanto uma grande nuvem cobria o centro do sol e avançava para o seu perímetro. O azul profundo retrocedeu no seu espectro de cor para dar lugar ao vermelho incandescente – achas de uma fogueira que ficou por carbonizar – e reflectiam o brilho intenso para si. Nesse momento Aníbal reparou nos olhos dos seus camaradas à sua volta, despojados de humanidade e da família dos pensamentos senis voltavam-se para ele focados, atentos.

Aníbal deu por si a dar passos atrás, quando uma escuridão avassaladora avançou ao seu encontro, as estrelas os olhos rubi de violência dos seus companheiros. Reparando nos dois que falavam no convés, notou protuberâncias emergindo da sua boca, crescendo até estagnarem tornando-se bicos imundos de um amarelo forte. Nos semblantes desses mesmos homens emergiam penas débeis, farrapos de uma quimera de pesadelo – um homem-ave sanguinário e cruel, raiz de todo o mal. Pareciam continuar as suas acções, sempre vislumbrando Aníbal como se ele fosse um assunto a resolver logo que acabassem as suas tarefas. Por fim todos se voltaram para ele e as costas vergaram-se abaixo para depois se encarquilharem num estranho ritual pré-carnificina. Os olhos encovados e cada vez maiores e mais vermelhos rugiam as badaladas sónicas de um inferno anterior ao tempo, ciclónico e destrutivo que se abatia sobre o homem.

Aníbal sabia que já tinha visto aquelas figuras monstruosas no mar oriental, algo que tentara esquecer fazia já muitos anos, reconheceu-lhe também a loucura que se abeirava de si e o cheiro de um sangue voraz. Sentia-se a ensandecer, tal como o fizera há anos frente aos paquistaneses. O pesado cenário desenrolou-se até que um dos 5 homens se chegou à frente, voltou o bico para o céu incandescente e ululou um grasnar gutural. Os restantes imitaram-no e o grasnar horrendo tornou-se numa parede de som baça e pantanosa. Aníbal sabia o que as criaturas estavam a fazer e percorreu-lhe um arrepio frio em toda a sua espinha à medida que ia perdendo as forças. Os monstros chamavam outros, o grasnar nada mais era que um farol de som que se libertava para a atmosfera distante. Qualquer um que ouvisse aquele som viria e Aníbal sabia que muitos mais aguardavam nos recantos mais sujos do oceano, pois esta era a sua casa e ele, mais uma vez, um intruso.

Num último esforço, trouxe as mãos à cintura para tocar a superfície polida da sua saif. Sentiu um puxão nas calças e ao olhar a seu lado deu com o rosto franzino do rapaz e todas as cores se alteraram, e afinal já não havia céus vermelhos como se o mundo estivesse prestes a chegar ao fim e não havia o brilho no mar, apenas o sol e o vento em rajadas descontínuas. Olhou o resto da tripulação, parecia que nada tinha acontecido, continuavam os seus afazeres, os outros dois na proa prolongavam a sua conversa. Aníbal voltou os olhos novamente para o rapaz que parecia indiferente à sua estupefacção e estado de alerta. O rapaz finalmente pronunciou-se:

- A chinesa. Tens que matar a criança.
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